Um povo sem memória é um povo sem identidade
É corrente o pensamento acadêmico de que o maior patrimônio de um povo é a sua história. Frisamos o “acadêmico”, por que essa consciência ainda não ultrapassou as fronteiras das Academias, se popularizando e atingindo as massas. Essa visão geral de História pode ser transferida para o movimento espírita que contou com muito poucas Instituições e confrades preocupados em manter uma memória espírita ao longo do século XX. Haja vista a dificuldade de qualquer pesquisador, espírita ou não, em realizar trabalhos que requeiram maior aprofundamento de um assunto, biografia ou história de Instituições. Não encontram facilidades e nem arquivos e bibliotecas especializadas em que possam desenvolver seus projetos.
Visitando ao longo dos anos vários Estados no Brasil percorrendo as bibliotecas e arquivos de entidades centenárias, pudemos observar, com tristeza, o descaso, para não dizer a destruição sistemática e constante de nosso patrimônio histórico e cultural. Dirigentes se imaginam onipotentes ao comandar Entidades tradicionais e têm a vista obscurecida pela sensação de poder, sem imaginar que eles passam, mas as Instituições ficam. Elas são a história, o dirigente apenas parte delas. E lá se vão para as lixeiras o que a ignorância humana julga ser “um amontoado de papéis sem utilidade”, “livros de registro sem a menor importância que só juntam traças”. E com isso perde a Instituição centenária sua história E todos nós, um pouco de nossa cultura.
Dois bons exemplos
Mas nem tudo está escuro à nossa frente. Recentemente tivemos a grata satisfação de ter duas experiências gratificantes. A primeira foi na Fazenda Santa Maria em Sacramento, MG, onde Eurípedes Barsanulfo se converteu ao Espiritismo e desenvolveu sua mediunidade. Pudemos admirar a restauração feita pelos descendentes de Sinhô Mariano e Eurípedes do casarão sede da Fazenda, construído entre 1851 e 1861, onde ainda há o quarto em que Eurípedes se hospedava A outra grata visita que fizemos foi à antiga sede da FEB no centro do Rio com suas escadarias enormes à antiga, pé direito inimaginável para nossos dias, seu salão de conferências confortável, a biblioteca do Wantuil e suas instalações bem cuidadas.
Nossa Cultura no imaginário do brasileiro
O Espiritismo, desde a metade do século XIX quando começou a ser introduzido no Brasil, a princípio entre os membros da Corte Imperial, mas depois se popularizando, tem se caracterizado pela formação de um forte e fiel movimento que tem produzido uma cultura que participa ativamente da vida intelectual do povo brasileiro. Hoje, por exemplo, é raro não se ver no gênero cultural mais apreciado no Brasil, a novela, o pai que volta do Além para instruir o filho, o espírito que vagueia obsediando os vivos, os benfeitores espirituais que orientam os mocinhos na sua vida, as aparições, etc.. Os autores recorrem em profusão a esses recursos em seus roteiros. E por que isso acontece? Naturalmente por que sabem que isso cai no gosto do público, é aceito pela maioria da população. Essa cultura foi produzida pelo Espiritismo e as religiões mediúnicas afro-católicas, fixando-se no imaginário do brasileiro que o aceita com naturalidade. A qualquer pessoa que se pergunte, ela tem ou conhece um caso de aparição ou de fenômeno psíquico.
Essas situações são parte da cultura que o movimento espírita tem sedimentado há 150 anos e por isso deve ser preocupação constante resgatarmos nossa memória para manter essa cultura viva e preservarmos nosso patrimônio. E como já o afirmamos acima, nosso maior patrimônio é nossa história. Nossas crenças, tradições e valores têm que ser passados de geração a geração sem que percamos nossa identidade e o contato com nossas raízes, nossos pioneiros e precursores. Quer queiram ou não, estamos inseridos na formação da cultura brasileira. O Espiritismo codificado pelo francês Allan Kardec chegou ao Brasil no auge da “Belle Époque” e da influência que a cultura e a sociedade francesa exerceram sobre nossa sociedade no século XIX. Não se limitou a introduzir um novo pensamento religioso, mas muitos de seus profitentes e simpatizantes, movidos pelos princípios e sentimentos que a nova Doutrina trazia, participaram ativamente de acontecimentos marcantes da História do Brasil como a Abolição, a Proclamação da República, a Laicidade do Estado, a Liberdade de Pensamento. Pioneiros do Espiritismo no Rio de Janeiro e outros Estados como Dias da Cruz, Bezerra de Menezes, Quintino Bocaiúva, Batuíra, Anália Franco, Ewerton de Quadros, só para citar alguns, participaram dos acontecimentos sociais e políticos que marcaram profundas mudanças na história de um povo que trocava a fase do colonialismo para o da Independência de sua Nação e da República.
Essa visão global do que representou e representa o Espiritismo na História do Brasil talvez tenha sido percebida por poucos, daí o erro de permanecermos tímidos em nossos trabalhos nas Casas Espíritas, quase anônimos, propugnando por uma humildade que nos leva a nos fecharmos em nossos casulos e tendo por horizonte apenas o trabalho assistencial e espiritual. Mas Espiritismo é muito mais do que isso. Espiritismo é a Doutrina que está preparando homens para a grande revolução pela qual está passando o pensamento religioso da Humanidade. A cada dia que passa, os homens se distanciam da ilógica dos dogmas e se compenetram da imortalidade da alma, da existência de mundos paralelos e da grandiosidade de uma Inteligência Suprema. Esses progressos evolutivos são irreversíveis.
Daí insistirmos na necessidade de preservarmos nossa cultura, de resgatarmos nossa memória, que nos dará condições de analisar nossas tradições e valores no futuro.
Um Centro Cultural do Espiritismo
Foi fundado em São Paulo um Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa de São Paulo, a Casa dos Espíritas, que deverá reunir num só espaço intensas atividades culturais e de preservação da memória do Espiritismo: Biblioteca de obras raras, Biblioteca circulante, Arquivo Histórico, Centro de Pesquisas, Museu, Museu de Imagem e do Som, Estúdio de Gravação, Centro Multimídia, Auditório e salas para palestras e seminários, etc.
Esse Centro deverá ser um pólo irradiador de cultura e fornecerá know-how para a criação de Centros semelhantes em outras cidades do Brasil. A proposta principal desse Centro é universalizar o patrimônio cultural espírita e espiritualista, preservar a memória do movimento, colocar à disposição do público espírita e não espírita seu acervo de livros e documentos. Também faz parte de seus objetivos divulgar pela Internet documentos e textos raros do Espiritismo de forma a permitir o acesso de todo o mundo ao conhecimento espírita e manter intercâmbio com outros Centros semelhantes. Essas iniciativas trazem a esperança de poder resgatar ainda muita coisa que está jogada no fundo das gavetas dos Centros Espíritas, das Bibliotecas públicas e de nossas Instituições centenárias. E mais que isso, incentivar e formar uma geração de historiadores e pesquisadores espíritas. Afinal, o Espiritismo será o grande luzeiro do futuro e merece ser visto com respeito pela sua influência na cultura geral do povo brasileiro e por sua participação na história do País. Como parte desse Projeto, há três anos, está sendo editado o Anuário Histórico Espírita com a missão não só de informar, mas de formar essa nova geração de Historiadores e Pesquisadores, oferecendo espaço para trabalhos afins com seus propósitos para escritores já conhecidos e também novatos. Também já estão se tornando tradicionais os Encontros anuais dos membros da Liga – o deste ano será realizado em novembro, na cidade de Santos. 1
O Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa já possui um prédio de quatro pisos em área nobre da cidade de São Paulo para funcionar, num edifício que precisa, porém, de pequenas reformas. Além disso, já conta com uma Biblioteca de 25 mil livros (40% espíritas e espiritualistas, muitas obras raras), preciosa Hemeroteca espírita (jornais e revistas) e milhares de documentos sobre Espiritismo que ainda necessitam ser catalogados.
1 Não aconteceu o Encontro em Santos, pois o Eduardo já estava hospitalizado.
Eduardo Carvalho Monteiro, 2005
(Eduardo desencarnou no dia 15/12/2005, em São Paulo, aos 55 anos de idade e hoje o Centro de Cultura idealizado por ele, também, um dos fundadores, leva o seu nome, em homenagem póstuma.)
One thought on “Para que a memória espírita não seja esquecida!”
Excelente a iniciativa. Cada Estado deveria, pelo menos, contribuir com a documentação, os trabalhos dos escritores e artistas espíritas ali nascidos, o que faz sua federação, o esforço na uniformização da doutrina, uma vez que o Espiritismo é divulgado de muitas formas, a depender de quem faz esse trabalho. Aqui no Ceará, noto isso, que existe um espiritismo à moda da casa e não, sempre fiel a causa.
Parabéns pela iniciativa. Espero que continue sempre viva e produzindo novos conteúdos.
https://youtu.be/BdwfP-aNcFw