Um amigo entre o humano e o sagrado

Por Wilson Garcia

Eduardo Carvalho Monteiro com Julia Nezu e o médium Divaldo Pereira Franco (ao centro).

Os homens no corpo físico precisam ser vistos necessariamente em sua condição humana. Mas não é fácil. O humano costuma revelar conflitos de que os humanos não gostam. Os conflitos trazem ao rés-do-chão e quebram ilusões, enquanto que o sagrado leva à abóboda celeste, onde sonhamos estar e esperamos chegar incólumes meritoriamente.

Digo isto por conta do momento em que devo relembrar o humanismo e o idealismo de um amigo caro: Eduardo Carvalho Monteiro. Os dois lados, as duas faces de um mesmo ser, faces que coexistiam e o tornavam uno em suas ações e desejos, em seu olhar condicionado, sua percepção da vida, sua disposição de luta.

O humano em Eduardo sofria com as desditas dos miseráveis espalhados pela face do planeta, mas também encontrava momentos de desespero, intemperança e impaciência quando diante do outro, daquele que caminha próximo e nem sempre se dispõe a atuar tão corajosamente quanto o idealista. Os quadros terríveis de abandono a que famílias e portadores de doenças são muitas vezes relegados ocasionavam nele o olhar da aflição que impunha ações rápidas para minorar aqueles sofrimentos. A correspondência do outro, muitas vezes tão frágil quanto a vontade, tornava Eduardo triste e amargo, duro e viril.

O seu idealismo como espírita teve início na mocidade e o tomou de assalto quando, em meio a um quadro obsessivo e a uma dedicação como líder de torcida do seu time de coração, viu-se diante de Chico Xavier, como Paulo na estrada de Damasco. Não há ciência capaz de explicar as razões do sentimento quando o ser descortina e queda-se ante uma face da realidade até então desconhecida, aquela que o toca como nenhuma outra. Neste particular, a filosofia está mais próxima da compreensão do humano.

Prisioneiro de suas desditas pessoais, Eduardo viu então, ali, uma porta aberta pela qual podia penetrar e adquirir liberdade, soltar-se para o mundo, mas sentiu, ao mesmo tempo, estar próximo de uma decisão que lhe cobraria um preço por essa conquista. Dispôs-se a pagar, alto que fosse. E foi.

Um dos primeiros seguimentos da sociedade a chamar sua atenção: a causa dos leprosos. Digo leprosos, sim, porque o termo hanseniano só se popularizou depois, muito por causa do trabalho feito por ele e outros, que assumiram a luta insana contra os preconceitos humanos e conseguiram alterar a realidade social cruel para com os sofredores dessa antiga doença.

Foi no Sanatório Pirapitingui, antiga instituição comunitária para onde eram levados os portadores do mal de Hansen, localizada no Estado de São Paulo, aonde ele primeiro fincou seus pés e dedicou-se inteiramente ao auxílio dos doentes e de seus familiares. Ali tomou conhecimento da histórica figura maiúscula de Jésus Gonçalves, portador do mal e cujas chagas, que derretiam partes de sua vestimenta carnal não o impediram de lutar bravamente pela vida, pela comunidade e por justiça social. Tornou-se então referência.

Diante dessa figura, Eduardo quedou-se, quase genuflexo, para depois lançar-se no estudo de sua vida e descobrir a inteligência que estava por trás do corpo continuamente carcomido, mas também sua história de vida e das vidas esquecidas no passado quase remoto. Surgiu daí o primeiro das mais de três dezenas de livros que escreveria, ora como autor solitário, ora na companhia de seus parceiros afetivos.

O jovem amadureceu e tornou-se um pesquisador persistente e visionário. Foi como se um fio de uma meada inimaginável lhe surgisse às mãos com a história de seu grande e primeiro ídolo, Jésus, poeta, músico e líder natural dos hansenianos.

É possível dizer que Eduardo concluía seus livros, mas jamais terminava, tal era a gana com que se lançava diuturnamente ao trabalho de pesquisa e a emoção com que descobria mais e mais fatos acerca do objeto de sua atenção.

Não demorou muito para que sua residência se tornasse um verdadeiro depósito de livros e documentos. A bela biblioteca herdada do avô, com obras excelentes e algumas raras, que ocupava o moderno sobrado da família no Bairro do Brooklin, em São Paulo, tornou-se seu refúgio e foi aos poucos sendo ampliada, até alcançar o caos da desordem, que somente ele era capaz de administrar.

O lado humano de Eduardo tinha planos para constituir família, porém, esse projeto jamais pôde ser por ele concluído porque se sentia responsável pelos cuidados da mãe, que adorava; depois porque os irmãos acabaram por ocupar parte considerável do seu tempo e preocupações.

Nas duas situações foi de uma dedicação exemplar. Na vida prática, no silêncio de quem sabe se reservar, foi o marido dedicado que a mãe deixou de ter; foi, também, o pai amoroso que o sobrinho jamais teria; e, além, foi mentor e amparo de seus irmãos, especialmente diante dos conflitos da vida que os atormentava em seus caminhos.

Quando a genitora, enfim, retornou à vida extrafísica, Eduardo foi ocupar, solitário, uma casa no Bairro da Saúde, onde continuou sua saga de pesquisador, escritor e trabalhador da causa humana.

Insaciável quanto ao conhecimento, lançou-se na Maçonaria onde, com o mesmo afã, dedicou largo tempo no desdobramento do saber, abrindo caminho para que fatos e histórias, filosofias e feitos tivessem seu destaque. Integrou-se de tal maneira à Ordem Maçônica que percorreu todas as etapas da instituição milenar, alcançando rapidamente o 33º grau. Ali, tornou-se articulista e membro da equipe editorial da revista A Verdade, editada pela Grande Loja Maçônica de São Paulo, além de ser autor de vários livros contendo assuntos relativos à Maçonaria. Deixou-a, um dia, desiludido com a política interna, mas não abandonou os estudos esotéricos.

Seu primeiro livro espírita – A extraordinária vida de Jésus Gonçalves – foi o definidor de uma trilha que Eduardo jamais imaginara seguir, mas na qual, entre dócil e áspero, fixou marcas capazes de surpreender aqueles que sonham um dia dedicar-se às causas nobres.

O seu lado humano era descuidado com muitas coisas materiais; tinha pressa em tudo e as preocupações dessa ordem tendiam a roubar-lhe o tempo que não desejava perder. Por isso, levava de roldão tudo aquilo que pudesse constituir barreira à sua caminhada para os objetivos propostos. Irascível, algumas vezes, destemido sempre.

Por outro lado, em contraste com o homem firme que não perdoava a indignidade, era afetivo e dócil com suas companheiras, com os amigos sinceros, com os sofredores, com aqueles em quem via sinceridade e dedicação ao bem.

Pouco antes de partir, viu-se diante de um como que imantado espelho revelador da face menos visível da alma e o que viu o fez derramar lágrimas. Apesar dos 55 anos vividos e fecundos, constatou-se, surpreso, deficiente no campo afetivo e fez questão de declarar isso aos amigos íntimos. Pensou repensar a vida ainda no aqui, sem saber que o agora não mais lhe pertencia. Encontrava-se, então, na estação de Rizzini, bagagem ao lado, à espera do último trem.

O mesmo vagão e a mesma poltrona daquele trem que o levou do planeta o esperam para trazê-lo de volta. A passagem já está reservada e, segundo consta, só falta marcar a data.

RESUMO BIOGRÁFICO

Eduardo Carvalho Monteiro nasceu no dia 3 de novembro de 1950, em São Paulo/SP, filho de Ivan Carvalho Monteiro e Denaide Carvalho Monteiro. Deixou o corpo físico em 15 de dezembro de 2005.

Era psicólogo e bacharel em Turismo, membro da Academia Paulista Maçônica de Letras, estudioso do espiritismo e das ciências herméticas, com quase 40 livros publicados sobre espiritismo, maçonaria e esoterismo.

Era assessor Pró-Memória da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo – USE. Foi também fundador e presidente da Sociedade Espírita Anália Franco, em Diadema/SP, membro da Liga de Historiadores e Pesquisadores Espíritas (LHPE), fundador e coordenador geral do Centro de Cultura, Documentação e Pesquisas do Espiritismo (CCDPE), entidade criada em 2004 para onde foi destinado o seu acervo pessoal de documentação histórica do movimento espírita.

LIVROS PUBLICADOS DE EDUARDO CARVALHO MONTEIRO*

100 anos de comunicação espírita em São Paulo, 2003

100 anos de evangelho com Eurípedes Barsanulfo, 2005

A extraordinária vida de Jésus Gonçalves, 1980

A Maçonaria e as tradições herméticas

Allan Kardec, o druida reencarnado, 1996

Anais do Instituto Espírita de Educação, 1994

Anália Franco, a grande dama da educação brasileira, 1992

Anuário Histórico Espírita 2003

Anuário Histórico Espírita 2004

Batuíra, o Diabo e a Igreja, 2003

Batuíra, verdade e luz, 1999

Cairbar Schutel, o bandeirante do Espiritismo, com Wilson Garcia, 1986

Catálogo Racional – obras para se fundar uma biblioteca espírita

Chico Xavier e Isabel, a rainha santa de Portugal, 2001

Dossiê Léon Denis – artigos, cartas e conferências inéditas

Élcio abraça os hansenianos, 2003

História da dramaturgia com temática espírita, 1999

História da radiodifusão espírita

História do Espiritismo em Piracicaba e região, 2000

Jesus Gonçalves, o poeta das chagas redentoras, 1998

Léon Denis e a Maçonaria

Leopoldo Machado em São Paulo, 1999

Loja Amphora Lucis, 25 anos de ideal maçônico

Marechal Ewerton Quadros

Memórias de Bezerra de Menezes

Motoqueiros no além, com Euricledes Formiga, médium, 1982

O esoterismo na ritualística maçônica, 2002

Olá, amigos! com Euclides Formiga, médium

Sala de visitas de Chico Xavier, 2000

Sinal de vida na imprensa espírita, com Wilson Garcia, 1995

Templos maçônicos e as moradas do sagrado, 1996

Tudo virá a seu tempo

Túnel do Tempo: as Primeiras Publicações Espíritas no Brasil

USE, 50 anos de unificação, com Natalino D’Olivo, 1997

Vinícius, educador de almas, com Wilson Garcia, 1995

Vitor Hugo e seus fantasmas, 1997

*Pesquisa feita por Wilson Garcia em 17 de novembro de 2015. Caso você conheça outras obras de Eduardo C. Monteiro não relacionadas acima, colabore informando: [email protected]